A devoção a São José segundo o arquiteto Antoni Gaudí

Antoni Gaudí i Cornet (1852-1926) era um arquiteto funcionalista: como acontece na Natureza, cada edifício seu é um organismo desenhado para desenvolver a sua função. Segundo ele, a função de um grande templo é dupla: no interior, o culto; e no exterior, na rua, a catequese. Realizando esta ideia, os muros e fachadas da Sagrada Família constituem uma explicação completa da mensagem da Igreja católica aos homens e mulheres do nosso mundo, da qual forma parte a devoção a São José.

Uma das torres da Sagrada Família. Foto JMT

Descrevemos neste artigo a proposta de devoção a São José que Gaudí apresenta com a Sagrada Família, obra que excedeu uma encomenda profissional realizada com a máxima satisfação do cliente, para construir a própria imagem do artista. Antoni Gaudí envolveu-se tanto que se converteu no Arquiteto da Sagrada Família. Pode-se afirmar: “Uma e outro, a basílica e o arquiteto, são corpo e alma, formam um mesmo ser. A obra é a exteriorização da alma de Gaudí”.

O Patrocínio de São José: Bocabella, Manyanet, Pio IX

Na solenidade da Imaculada, 8 de dezembro de 1870, o beato Pio IX declarou São José Padroeiro da Igreja católica. Fazia menos de três meses que, em 20 de setembro, havia se rendido à Itália, evitando um derramamento de sangue em Roma, que estava sendo defendida por seu exército.

A queda de Roma havia terminado à força com mais de onze séculos de história dos Estados Pontifícios, com a consequência de deixar a Santa Sé sem meios de subsistência e possibilidades de atuação. Pio IX foi ao Vaticano e içou uma bandeira branca. Negou-se, no entanto, a reconhecer um novo estado – se o tivesse feito, ele teria passado a ser um súdito italiano comum – e permaneceu no Vaticano como prisioneiro de guerra.

Muitas forças sociais e políticas, influenciadas singularmente pela Maçonaria, pensavam que Pio IX seria o último Papa e que depois de sua morte já não seria eleito nenhum sucessor. “Atacada por seus inimigos por todos os lados e oprimida por tão graves calamidades parecia que os ímpios acreditavam que as portas do inferno prevaleceriam sobre ela”[1].

Europa sangrava na guerra franco-prussiana e a Primeira Internacional – fundada por Marx, Engels e Bakunin – animava as massas populares, começando a incubar-se a Comuna de Paris (1871). Na Espanha, a Revolução Gloriosa (1868) – com grande entusiasmo por parte de um jovenzinho Antoni Gaudí – estabeleceu como rei Amadeo I, terceiro filho de Victor Manuel II, o usurpador dos Estados Pontifícios. Na Catalunha, começaria logo uma nova guerra civil, a Terceira Guerra Carlista (1872 – 1876), mais cruel e longa que as anteriores.

São José Manyanet, adiantando-se um ano e meio ao Romano Pontífice, havia concebido em junho de 1869 um grande templo expiatório, construído com esmolas, dedicado a São José.

Fazia também quatro anos que o livreiro Josep Maria Bocabella havia recorrido a São José para socorrer a Santa Sé. Fundara em Barcelona em 1866 a Associação de devotos de São José, com a finalidade de arrecadar fundos que ia enviando ao Papa.

A Sagrada Família. Detalhe da coluna palmeira de São José. Foto JMT

Sobre São José na Sagrada Família

A diocese de Urgell, à qual pertencia o padre Manyanet, afetada pela Terceira Guerra Carlista, não podia construir o templo expiatório de São José. Foi Josep Maria Bocabella que levou a ideia à pratica. O mesmo padre Manyanet – canonizado em 2004 por São João Paulo II, como “verdadeiro apóstolo da família” – ampliou a dedicação do futuro templo à Sagrada Família. José é, de fato, esposo de Maria e cabeça da família de Jesus, que com a sua obediência a ambos[2] santificou as virtudes domésticas.

Em abril de 1874, na metade da guerra civil, Bocabella propôs “erigir um templo dedicado à Sagrada Família, à imitação do que estão fazendo os católicos franceses em honra do Sagrado Coração em Montmartre e os católicos romanos prometeram também em honra do Sagrado Coração, assim que se alcançar o triunfo da Igreja”.

A primeira pedra do templo expiatório que a Galia penitentes et devota et grata dedicada ao Coração foi posta em 16 de junho de 1875, três anos depois da ideia ter sido lançada. A da Sagrada Família foi posta em 19 de março de 1872, treze anos depois da inspiração de Manyanet e oito anos depois do anúncio de Bocabella. As obras do Sacré Coeur duraram quarenta e quatro anos; a Sagrada Família continua em construção e o templo expiatório dos católicos italianos não saiu do papel.

Os três primeiros sucessores do Bem-aventurado Pio IX – Leão XII, São Pio X, Bento XV – permaneceram fechados a vida inteira no Vaticano, sem nenhum reconhecimento jurídico. O quarto, Pio XI, em 11 de fevereiro de 1929, cinquenta e nove anos depois da ocupação militar de Roma, reconheceu a Itália como Estado Soberano e conseguiu que a Itália fizesse o mesmo com a Cidade do Vaticano; trata-se de um minúsculo estado independente criado então e que ainda hoje permanece sob jurisdição pontifícia.

Capela de São José da cripta, 1885

Gaudí encarregou-se das obras da Sagrada Família, iniciadas pelo arquiteto Francisco de Paula del Villar, em 28 de março de 1884. Em pouco menos de um ano, 18 de março de 1885, inaugurou a capela de São José, dentro do estilo neogótico da cripta. Anos depois, em 1916, o baldaquino, de estilo modernista. Sete lírios do Nilo, de ferro forjado, entrecruzam as folhas formando o dossel da imagem. Os talos estão inclinados e florescem. São sete lírios em honra das sete dores e alegrias de São José. As sete luzes se acendiam nas festas do santo patriarca e quando os devotos colaboravam com elas com uma esmola de quarenta e nove reais (sete vezes sete). Gaudí, uma vez terminada a cripta, abandonou o projeto neogótico de Del Villar e começou o seu com estilo próprio. Recebeu logo o apoio do padre Jacint Verdaguer, o qual, na primavera de 1886, escreveu em seu diário: “A Trindade da terra terá, dentro de poucos anos, o maior e mais formoso templo que há no mundo”[3].

Fachada da Natividade: O feliz e frutuoso matrimônio de Maria e José, fundamento da Igreja católica

Gaudí construía por franjas verticais. Terminada a parede da abside, iniciou a Fachada da Natividade, orientada em direção ao subúrbio operário, deixando para depois a Fachada da Paixão, voltada em direção aos bairros ricos. Esta escolha, colocar os pobres na frente, não lhe seria perdoada em vida: reprovariam sempre isso, sobretudo durante os longos anos em que não recebia donativos e as obras perderam ritmo a tal ponto que teve que dar a vida sem sequer começar as partes principais da basílica.

Como fazia sempre, procurou a documentação exclusivamente na Sagrada Escritura, na Liturgia e no L’Année Liturgique de dom Guéranger; além dos ensinamentos e exemplos de vários amigos que alimentaram sua concepção da devoção a São José: o poeta Jacint Verdaguer, autor de Jesus menino; seu mestre, o arquiteto Joan Martorell; o cliente Josep Maria Bocabella; São José Manyanet, apóstolo da família; seu diretor espiritual, o padre Lluís Maria de Valls; seu cliente Santo Enrique de Ossó, grande conhecedor e devoto de Santa Tereza de Ávila; o venerável bispo Josep Torras i Bages, pastor da Renascença cristã; o cardeal da paz, Francisco de Asís Vidal y Barraquer; e a Bem-aventurada Petra de São José, fundadora de São José de la Montaña.

A Fachada é um grande salmo da alegria do Universo pela chegada da sua salvação, mediante o nascimento de Deus dentro dele, no espaço e no tempo. É um organismo único, que cresce da terra em direção ao céu, numa sucessão lógica, escalada e rítmica de formas com um simbolismo transcendente.

A Sagrada Família. São José pilota a barca da Igreja. Foto JMT

O artista dava a seguinte explicação sobre a fachada da Natividade: “Encontra-se, desenvolvido simbolicamente, o Patrocínio de São José sobre a Igreja católica”. Assim, Maria atua sem a companhia de seu esposo apenas na Anunciação e na Visitação e Jesus aparece sempre protegido e amado paternalmente por José.

No dia 7 de novembro de 1982, ao rezar o Ângelus, São João Paulo II dizia:

“Este templo da Sagrada Família (...) recorda e compendia outra construção feita com pedras vivas: a família cristã. (...) Que a família seja sempre entre vós autêntica ‘Igreja doméstica’, lugar consagrado ao diálogo com Deus Pai, escola de seguimento de Cristo pelos caminhos indicados no Evangelho, fermento de convivência e de virtudes sociais com o Espírito que habita suas almas”.

Gaudí, com efeito, visualiza a Igreja como fundamentada nas três pessoas da Sagrada Família, como se fosse uma ampliação da mesma. As colunas, que tradicionalmente representam São Pedro e São Paulo, ele as dedica a Santa Maria e São José. Seus nomes – entre flores, como canta a liturgia – colocam em evidência que a Igreja e o Universo – o conjunto da fachada da Natividade, compêndio de todas as criaturas materiais e espirituais, no início de sua salvação – fundamenta-se em Maria e José.

A Liturgia canta Caelitum, Ioseph, decus, atque nostrae certa spes vitae, columenque mundi[4], honra dos habitantes do céu, esperança de nossa vida aqui em baixo e coluna do Universo. Guéranger comenta que José é verdadeiramente uma coluna que sustenta o Mundo para que Deus, em vista dos seus méritos e por deferência à sua oração, suporte-o e conserve-o apesar das iniquidades que o mancham. E a Igreja lhe suplica que não abandone esta função de Protetor universal[5].

Os capitéis são palmeiras: a de Maria, da Palestina e a de José, do Egito. Ambas no mesmo nível, transbordantes de tâmaras, um símbolo antiquíssimo, anterior ao judaísmo, da fertilidade e do amor matrimonial, aplicado posteriormente também na Igreja católica a seus frutos de santidade. São esposos felizes na doação mútua, que crescem como justos nos átrios de Deus.

O mainel é a pequena palmeira de Jesus, situado entre José e Maria. Está completa a iconografia da Trindade da terra. Maria e José mostram Jesus no Mundo às portas da Igreja, convidando a humanidade a entrar.

Nove representações de São José em três portais e três níveis

Sobre os brotos da palmeira de Jesus está o grupo da Natividade[6], onde José começa a exercer o Patrocínio: oferece a sacola das ferramentas para que Maria envolva o Bebê.

À esquerda, no Portal da Esperança, José salva a futura Igreja, formada só pelo Pequeno no regaço de Maria, da primeira grande perseguição dos homens, partindo para o exílio num simpático burrinho. Na casa que ele constrói em Heliópolis, tudo é paz. Mantém Maria e o Menino com o seu trabalho. Descansa um momento para conversar ternamente com Jesus, que se abraça a ele.

À direita, o Portal da Fé glosa o retorno à Palestina. Jesus adolescente manifesta a sua divindade no Templo de Jerusalém e, José e Maria aturdidos, encontram-no. Ele lhes pede, também a eles, que acreditem na sua divindade.

Mais acima, no Portal da Caridade, a Anunciação. À esquerda e à direita, as implicações para José: as bodas e a apresentação do Menino no Templo.

Jesus quis encarnar numa mulher casada e o Espírito Santo escolheu o melhor dos esposos. Cumprindo esta vontade de Deus, José converteu-se em São José. O Espírito Santo guiou-o a aceitar o Filho de Maria, registrá-lo, circuncidá-lo, apresentá-lo como seu primogênito, mantê-lo, amá-lo, salvar-lhe a vida nos perigos, protegê-lo, educá-lo junto com Maria, ensinar-lhe a praticar a religião e a cidadania, ir procurá-lo se se perdesse, associá-lo a seu trabalho e deixar-lhe em herança a oficina para que ganhasse a vida e sustentasse a sua mãe viúva.

No Templo de Jerusalém – a vivenda de Deus, na religião antiga – José oferece seu primogênito legal, que é o verdadeiro Cordeiro. O Pai lhe manifesta que o aceita, despertando o profetismo de Israel.

A Fachada da Natividade continua subindo ao céu e, no terceiro nível a Santíssima Trindade coroa Maria. Seu esposo participa da festa.

O antecedente é a Imaculada Conceição. O Portal da Fé, com o monograma de José, transbordante de simbolismo, coroa tudo. Em uma parreira cheia de frutos, símbolo do lar, abre-se um heptágono: É o Espírito Santo que nos mostra o ramo de lírios que, segundo a tradição apócrifa, floresceu da vara de José transformada assim no buquê de noiva de Maria.

E o corolário, no cume do Portal da Esperança, é José dirigindo o leme da nave da Igreja no meio da borrasca, orientando-se pelo monograma de Maria: a Estrela do Mar.

Escudo de armas da basílica da Sagrada Familia. Foto JMT

São José protege as obras da basílica. A Semana Trágica, 1909.

Todos os que amam a basílica da Sagrada Família, põem nas mãos de São José a obra, que tantas vezes parecia superada por inumeráveis dificuldades. Gaudí, com a perspectiva da velhice, via tudo como providencial, inclusive a sua participação como arquiteto, dizia que a renúncia de seu antecessor, Del Villar, tinha sido um milagre de São José – e exclamava repetidamente: “São José acabará este templo!”

Um dos episódios que fez sobressair a proteção de São José foi a Semana Trágica (25 de julho a 2 de agosto de 1909). Os anticlericais, donos das ruas, incendiaram um terço dos templos e edifícios religiosos de Barcelona, a maioria dos quais situados em bairros operários. A Sagrada Família era o epicentro de um dos subúrbios mais infestados da propaganda dos inimigos da Igreja; foi alvo de várias tentativas, abandonadas por seus autores antes de causar qualquer dano, sem que nenhuma força humana a isso se opusesse.

Todos acreditaram que o templo não tinha sido atingido por uma proteção especialíssima de São José e em 15 de agosto celebrou-se um ofício religioso de ação de graças a São José pela salvação do templo.

A Sagrada Família, a Catedral dos Pobres, assim como os antigos monastérios medievais – Ripoll, Poblet – é também um castelo. E o escudo de armas desenhado por Gaudí, inspirado no de Montserrat, é a serra de José, onde uma biruta forma a inicial de Maria e a cruz de Jesus arremata o laço.

Josep Maria Tarragona y Clarasó


[1] Pius IX: Quemadmodum Deus, 8/12/1870, decreto nomeando São José Padroeiro da Igreja.

[2] Lc 2, 51.

[3] Verdaguer: Dietari d’um pelegrí a Terra Santa, 1889.

[4] Breviário Romano, Laudes de São José.

[5] Guéranger, L’Année Liturgique.

[6] Realizado pelo escultor Jaume Busquets (1903-1968) depois da morte de Gaudí.