19:50
Dominus Vobiscum.
746
58. SERMÃO - OITAVO SERMÃO SOBRE A PAIXÃO DO SENHOR (São Leão Magno) 1. Recordação do sermão anterior. Prisão de Jesus Caríssimos, em nosso último sermão percorremos os acontecimentos que precederam …Mais
58. SERMÃO - OITAVO SERMÃO SOBRE A PAIXÃO DO SENHOR (São Leão Magno)

1. Recordação do sermão anterior. Prisão de Jesus
Caríssimos, em nosso último sermão percorremos os acontecimentos que precederam a prisão do Senhor; resta-nos agora, com a ajuda da graça de Deus, expor-vos, segundo nossa promessa, o desenrolar da paixão. Ora, o Senhor tinha manifestado, nos termos de sua oração sagrada, que a natureza humana e a natureza divina existiam nele de modo veríssimo e pleníssimo, mostrando de onde lhe vinha o desejo de não sofrer e de onde o de sofrer. Mas, uma vez expulso o tremor próprio da fraqueza e confirmada a grandeza de alma, própria do poder, ele retomou a decisão do plano eterno; ao furor do diabo, que se exercia por meio dos judeus, ele opôs sua condição de servo totalmente isento de pecado; assim a causa de todos seria defendida pelo único no qual se encontrava, sem a falta, a natureza de todos. Os filhos das trevas se precipitaram, pois, sobre a verdadeira luz e, usando tochas e lanternas, não escaparam da noite de sua infidelidade, porque não discerniram o autor da luz.
Apoderaram-se daquele que estava preparado para deixar-se prender e levaram aquele que queria ser levado; se ele quisesse resistir, certamente as mãos ímpias não poderiam fazer-lhe nenhum mal, mas a redenção do mundo seria retardada; preservando-se, ele, que devia morrer pela salvação de todos, não teria salvo ninguém.
2. Jesus diante de Pilatos; covardia deste
Consentindo, pois, que o fizessem sofrer tudo o que o furor popular, excitado pelos sacerdotes, ousava, ele é conduzido a Anás, sogro de Caifás, e em seguida novamente a Caifás, reenviado por Anás; depois das calúnias insensatas ditas contra ele, depois das invenções de testemunhas subornadas, ele é levado ao tribunal de Pilatos por uma delegação de sacerdotes. Estes, não se importando com o direito divino, gritam que não têm outro rei senão César, como se, devotados às leis romanas, tivessem reservado todo julgamento ao poder do procurador; na realidade, eles queriam um executor de sua violência, não um árbitro da causa. Com efeito, apresentaram Jesus atado com duras amarras, golpeado por bofetadas, coberto de escarros, condenado antecipadamente pelos gritos; diante de tantos pré-julgamentos, pensavam eles, Pilatos não ousaria absolver aquele cuja morte todos queriam.
A instrução do caso mostra que ele não encontrou culpa no acusado e que não teve firmeza em seu julgamento, porque, nessa audiência o juiz condena aquele que declara inocente e entrega ao povo iníquo o sangue do justo, sangue do qual compreendeu por sua própria reflexão e soube pelo sonho de sua mulher que devia abster-se. A ablução das mãos não lava a sujeira de sua alma; não é fazendo escorrer água sobre seus dedos que ele expia o ato cometido com a cumplicidade de seu coração ímpio. É verdade que a falta de Pilatos é ultrapassada pelo crime dos judeus, os quais, aterrorizando-o com o nome de César e ensurdecendo-o com seus gritos raivosos, impeliram-no a cometer seu crime. Não obstante, ele também não escapa à culpa, porque cooperou com a sedição, renunciando ao seu próprio julgamento e assentindo no crime dos outros.
3. Furor dos judeus
Se, pois, caríssimos, Pilatos, vencido pelo furor de um povo implacável, permitiu que Jesus fosse desrespeitado com tantos ultrajes e atormentado com insultos sem medida, se ele o expôs aos olhos dos escribas e dos sacerdotes, flagelado, coroado de espinhos e vestido com uma roupa de derrisão, foi, sem dúvida, porque pensava que assim aplacaria o espírito de seus inimigos: satisfeitos, além de toda medida, seu ódio e sua inveja, eles não pensariam em continuar perseguindo aquele que viam maltratado de vários modos. Mas, como se inflamasse mais a ira daqueles que, aos gritos, pediam a graça da libertação para Barrabás e a pena da cruz para o Cristo, como a multidão, rugindo, dizia a uma só voz: "O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos!", os maus obtiveram, para sua perda, o que exigiam obstinadamente; o profeta tinha atestado isso, dizendo: "Seus dentes são lanças e flechas, sua língua é espada afiada".
Em vão mantiveram eles suas mãos alheias à crucifixão do Senhor de majestade, uma vez que lançaram contra ele os dardos mortais de seus gritos e as setas envenenadas de suas palavras. É sobre vós, judeus, mentirosos e príncipes de um povo sacrílego, que recai todo o peso desse crime; ainda que a crueldade dessa maldade abranja também o procurador e os soldados, todo o conjunto da ação vos acusa. Seja qual for o pecado que Pilatos, por seu julgamento, e a coorte, por sua obediência, tenham cometido no suplício de Cristo, isso vos torna mais dignos da execração do gênero humano, porque a pressão exercida por vossa demência não permitiu que permanecessem inocentes aqueles que não aprovavam vossa injustiça.
4. Jesus carrega sua cruz
O Senhor é, pois, entregue ao arbítrio dos furiosos, os quais, para insultar sua dignidade real, obrigam-no a carregar o instrumento de seu suplício; assim se cumpria o que o profeta Isaías tinha previsto, dizendo:
"Um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, ele recebeu o poder sobre seus ombros". Quando o Senhor levava o madeiro da cruz, madeiro que ele ia transformar em cetro de poder, certamente para os ímpios isso era objeto de derrisão, mas para os fiéis manifestava-se nele um grande mistério, porque esse gloriosíssimo vencedor do diabo e onipotente triunfador das forças adversas levava num belo instrumento o troféu de sua vitória e, em seus ombros, com invencível paciência, apresentava o sinal da salvação à adoração de todos os reinos; dir-se-ia que, pelo espetáculo de sua ação, ele fortalecia todos os seus imitadores e lhes dizia: "Aquele que não toma a sua cruz e me segue não é digno de mim".
5. Simão carrega a cruz de Jesus
Como a multidão ia junto com Jesus para o lugar do suplício, encontraram certo Simão de Cirene e transferiram a cruz para os ombros dele; esse gesto prefigurava a fé dos gentios, para os quais a cruz de Cristo ia tornar-se uma glória, e não um opróbrio. Não foi, portanto, acaso, mas sinal místico se, diante dos judeus obstinados contra Cristo, encontrou-se um estrangeiro que se compadeceu de seus sofrimentos, segundo a palavra do Apóstolo: "Se sofremos com ele, também com ele seremos glorificados". Não foi um hebreu, um israelita, mas um homem de outra raça que foi submetido à santíssima ignomínia do Salvador. Por essa transferência da cruz, a propiciação proporcionada pelo Cordeiro sem mancha e a plenitude de todos os ritos figurativos passavam da circuncisão para os incircuncisos, dos filhos segundo a carne para os filhos segundo o espírito. Na verdade, como diz o Apóstolo, "nossa páscoa, Cristo, foi imolado".
Oferecendo-se ao Pai em novo e verdadeiro sacrifício de reconciliação, ele foi crucificado não no templo, cuja dignidade já tinha chegado ao fim, nem no recinto da cidade, a qual, em punição de seu crime, ia ser destruída, mas fora, fora do acampamento, para que, terminado o mistério das vítimas antigas, fosse colocada uma nova vítima em novo altar, e a cruz de Cristo fosse esse altar, não mais do templo, mas do mundo.
6. Compreender o sentido da cruz
Eis, pois, caríssimos, Cristo exaltado pela cruz. O olhar de nossa alma não deve impressionar-se somente com o aspecto exterior que se apresentava aos olhos dos ímpios, daqueles aos quais Moisés tinha dito:
"Tua vida penderá à tua frente por um fio; ficarás apavorado noite e dia, e não acreditarás mais na vida". Com efeito, aqueles homens não puderam ver no Senhor crucificado outra coisa senão seu crime e, se tinham algum temor, não era aquele pelo qual a fé verdadeira é justificada, mas aquele que atormenta a má consciência. Quanto a nós, esforcemo-nos para que a nossa inteligência, iluminada pelo Espírito da verdade, receba, com coração puro e livre, a glória da cruz, a qual se irradia para o céu e a terra; que seu olhar interior contemple o sentido destas palavras do Senhor, referentes à iminência da paixão:
"É chegada a hora em que será glorificado o Filho do Homem"; e: "Minha alma está agora conturbada. Que direi? Pai, salva-me desta hora. Mas foi precisamente para esta hora que eu vim.
Pai, glorifica o teu Filho". Então, do céu veio a voz do Pai, dizendo: "Eu o glorifiquei e o glorificarei novamente". Em seguida, dirigindo-se aos assistentes, disse Jesus: "Essa voz não ressoou para mim, mas para vós. É agora o julgamento deste mundo, agora o príncipe deste mundo será lançado fora; e, quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim".
7. Glória da cruz
Oh! admirável poder da cruz! Oh! glória inefável da paixão! Nela se encontra o tribunal do Senhor, nela o julgamento do mundo, nela o poder do crucificado! Atraíste tudo a ti, Senhor, e, enquanto estendias durante todo um dia tuas mãos para um povo incrédulo e obstinado em contradizer-te, o mundo inteiro recebeu o entendimento para confessar tua majestade! Atraíste tudo a ti, Senhor, porque, para execrar o crime dos judeus, todos os elementos pronunciaram uma sentença unânime, quando os luminares celestes se escureceram, e o dia se mudou em noite, quando a terra foi sacudida por movimentos insólitos, e a criação inteira se recusou a servir aos ímpios! Atraíste tudo a ti, Senhor, porque, rasgado o véu do templo, o Santo dos Santos se retirou de pontífices indignos; a figura se mudou então em verdade; a profecia, em manifestação; a Lei, no Evangelho.
Atraíste tudo a ti, Senhor, a fim de que o culto de todas as nações do universo celebre, mediante um sacramento pleno e manifesto, o que se fazia num só templo da Judéia e sob a sombra de figuras. Com efeito, agora a ordem dos levitas é mais ilustre, a dignidade dos anciãos é mais elevada e a unção dos sacerdotes é mais sagrada; porque tua cruz é a fonte de todas as bênçãos, a causa de todas as graças; por ela, da fraqueza os crentes recebem a força; do opróbrio, a glória; da morte, a vida. Agora a diversidade dos sacrifícios carnais está terminada; a oferenda única de teu corpo e de teu sangue consome todas as diferenças …